Fonte: Estadão
Sessenta anos depois da publicação original de Quarto de Despejo — Diário de uma Favelada (1960, pela Francisco Alves), a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é enfim contemplada por uma grande editora brasileira (a Companhia das Letras), cujo projeto — finalmente — prevê o trabalho, até então inédito no mercado editorial, de mergulhar nos textos da escritora e publicar sua obra completa.
Tratada por uma parte considerável dos pares escritores, pela cobertura midiática e pelos leitores como uma autora exótica, cuja contribuição se resumia à condição de favelada, Carolina deixou em manuscritos centenas de textos, que constroem um conjunto singular de poemas, contos, romances, peças de teatro, letras de músicas, provérbios e entradas de diários, antecipando em décadas o surgimento de vozes literárias diversas e de diversas origens do tecido social brasileiro.
As novas edições começam por Casa de Alvenaria, publicado primeiro em 1961, e que reflete na linguagem única de Carolina o ano imediatamente seguinte ao sucesso de Quarto de Despejo, o livro editado por Audálio Dantas (1929-2018) que a colocou em evidência no cenário brasileiro e internacional, traduzido para 13 idiomas e publicado em mais de 40 países.
O trabalho será coordenado por um conselho editorial, formado por Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, pela escritora Conceição Evaristo e pelas pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez.
“O melhor da Carolina vai aparecer agora”, garante Vera, por telefone, entusiasmada com o trabalho que vem pela frente. “Tenho ela como minha mãe, mas como escritora, eu me pergunto: quem foi essa mulher? Ela teve um ano e meio de estudo, nunca mais entrou numa escola. Mas ela falava em versos, ela xingava a gente em versos. Eu andava muito com ela pela cidade, e muitas vezes ela pedia para parar. Ela pegava um papel qualquer, tirava um lápis do bolso e escrevia um poema.”
Quarto de Despejo não sai pela Companhia das Letras
O livro Quarto de Despejotal como existe (publicado há décadas pela editora Ática) não faz parte do projeto por decisão de Vera. A edição de Dantas, com quem Carolina nutriu sentimentos contraditórios de gratidão e angústia durante toda a vida, cortou partes do texto original que o conselho editorial quer revelar agora ao público. É o mesmo caso de Casa de Alvenaria e de Diário de Bitita, publicado na França em 1977 e depois retraduzido para o português — o original deste livro hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, parceiro no projeto de divulgação da obra de Carolina. Outros dois diários serão publicados, um de viagens e outro “do sítio”.
O sítio em Parelheiros foi para onde Carolina se mudou com a família (ela, Vera, João e José, os dois irmãos, que já morreram) após a “casa de alvenaria” no bairro de Santana. Antes de morrer, a escritora pediu à filha para nunca vender o pedaço de terra (a cerca de 30 km do centro da cidade), o que Vera cumpriu, depois de comprar a parte dos irmãos. “Eu não quero fazer museu: quero fazer um espaço para ela”, explica. “Tenho muito amor àquele sítio. Tem pessoas que querem montar peças ali, por exemplo, eu deixo. Dei uma mexida na casa, mas deixei o ar dela. As árvores que ela plantou continuam lá. Ela usava a sombra delas para escrever. Meus filhos não saem de lá. Tem uma pessoa que mora lá.”
O IMS preparava para 2020 uma exposição abrangente sobre vida e obra de Carolina (num projeto que também incluiria Clarice Lispector, em mostras separadas mas simultâneas — um encontro real de Carolina e Clarice entrou para a história, do qual sobrou uma fotografia). A pandemia atrapalhou os planos, e as exposições ficaram para o ano que vem.
Para a exposição de Carolina, o IMS construiu uma equipe de pesquisa curatorial e de investigação, liderada pelos pesquisadores Raquel Barreto e Hélio Menezes. “Será a primeira vez que curadores negros se ocupam de produzir uma exposição desse porte sobre Carolina, que acredito que nos dará várias facetas”, explica o diretor artístico do Instituto, João Fernandes.
O acervo de Carolina Maria de Jesus
João Fernandes explica que foi com os curadores até Sacramento, Minas Gerais, cidade onde Carolina nasceu, frequentou seu breve período escolar, chegou a ser presa e de onde saiu para nunca mais voltar. É lá onde está a maior parte do acervo de Carolina Maria de Jesus, guardado hoje na cela em que Carolina foi presa com a mãe, ainda muito jovem. Diversas fontes consultadas pelo Estadão demonstraram preocupação com a situação dos papéis, documentos e imagens depositados ali — há relatos de gente manuseando os papéis sem qualquer tipo de proteção, ausência de controle e fiscalização de visitantes, e até de gente andando com documentos do acervo pela cidade.
“Tenho que tirar de lá, porque eles não conservam”, diz Vera. “Quando minha mãe morreu, ela tinha os livros, os papéis, fotos e umas outras coisas, como a sua máquina de costura. Ela me dizia: ‘Quando eu morrer, a máquina é sua’. Mas meu irmão acabou ficando com os objetos, e eu fiz questão de ficar com os livros dela. Brigamos feio, porque ele queria dar para o Audálio. Eu peguei e trouxe para minha casa. Ficou aqui por um tempo, eu ainda era bobona, não sabia bem lidar com essa situação. Ela sofreu muito em Sacramento. Saiu de lá, foi presa. Ela nunca mais voltou, não podia nem ouvir falar. Mas nos 300 anos da morte de Zumbi (1995) eu fui para lá e fui muito bem tratada. Pensei: ‘Puxa vida, vou levar para lá’. Agora fica na cadeia. Os historiadores acham um absurdo.”
Segundo Vera, há uma resistência das diversas administrações da Prefeitura da cidade em entregar o acervo de volta, já que a doação foi feita de maneira voluntária no passado.
“O Instituto Moreira Salles quis comprar e preservar, tem uns dois anos”, diz Vera (o Instituto preferiu não comentar a situação, dizendo que ela diz respeito a Vera e Sacramento). “Pessoal da Biblioteca Nacional me chamou, o Museu Afro também quer. A briga é feia. Eles (de Sacramento) não conservam e também não entregam. A doação que eu fiz não foi em cartório. Existe um processo coletivo, a Defensoria Pública está envolvida, mas anda muito lentamente. Tenho informações de que os escritores de lá não conseguem se sobressair, porque Carolina vive, então eles têm um ciúme.”
O acervo de Carolina, na verdade, está espalhado. Vera conta que, recentemente, um homem de Curitiba ligou para ela dizendo que possuía um volume de manuscritos originais de Carolina, e depois de uma negociação um tanto acidentada, conseguiu convencer o “aristocrata” a devolvê-lo.
Os originais de Quarto de Despejo, por exemplo, estão sob a guarda da Biblioteca Nacional (na mesma seção que uma primeira edição de Os Lusíadas, como Vera gosta de salientar). Há documentos e fotos no Museu Afro Brasil, em São Paulo, no IMS, no acervo de Audálio Dantas e em diversas outras localidades, inclusive em outros países, além, claro, de Sacramento. Carolina tinha o costume, desde os anos 1940, de distribuir papéis e manuscritos originais para jornalistas e editoras, em busca de publicação, o que torna o processo de pesquisa mais árduo.
Os direitos autorais de Carolina Maria de Jesus no exterior
Outra questão que segue nebulosa são os direitos autorais das obras da escritora publicadas no exterior. “Recebemos direitos autorais dos EUA. Mas só. Nos últimos anos, recebemos muitas solicitações para publicar por novas editoras em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha. Acho que com nosso projeto de edição aqui no Brasil vai haver uma nova explosão também no exterior”, explica Vera.
Vera Eunice de Jesus
Uma das “personagens” do livro mais conhecido de Carolina, Vera Eunice de Jesus tem hoje 67 anos, se aposentou como professora de português para o ensino médio no estado de São Paulo, mas segue no ofício de professora, agora dedicada às crianças menores, atualmente na EMEI Ceu Vila Rubi, ao sul de Interlagos.
“Eu deveria ter me aposentado, mas adoro dar aulas para os pequenos. Eles são de periferia, são de comunidades, chegam sem apoio das famílias. Nisso vejo a diferença com minha mãe. A gente passou muito aperto, foram apenas três anos de fartura pelo sucesso do livro. Mas eu me vejo nessas crianças, procuro fazer um trabalho de conversar com eles. Agora na pandemia, estou trabalhando com cestas básicas nas favelas. A gente distribui essas cestas e eu lembro muito da minha mãe. Três horas antes do horário marcado, já tem gente esperando. O Quarto de Despejo vai ser sempre atual.”
Vera tem cinco filhos, e todos estudaram, ela conta, orgulhosa, mas nenhum se decidiu pelo caminho das letras. “Minha neta, Barbara, lê muito e gosta muito de escrever. Quem sabe?”, diz. “Trago isso da minha mãe: o mais importante é o estudo. Sempre falo para os meus alunos e nas palestras, que se não fosse esse um ano e meio de estudo dela, a gente não estaria aqui falando dela até hoje.”
Outro aspecto que Vera chama atenção sobre a obra de Carolina é um caráter universal, mesmo com suas origens específicas. “Fiz uma palestra em Juiz de Fora, um aluno branco me entregou um poema que havia escrito para a minha mãe. Na Flup (Festa Literária das Periferias), nós sentamos para autografar os livros e veio uma mulher negra, em recuperação do vício em drogas, e ela me disse: morei aqui na Cracolândia mas queria que você autografasse. Li a história e decidi sair das drogas, fui cursar teatro.”
Em outra ocasião, numa escola particular em São Paulo que era “a cara da riqueza”, um garoto de 14 anos disse que não via a própria mãe há meses. Ele me disse: ‘Você falou que passava fome, mas que tinha uma mãe, que lia, cantava, contava casos da terra dela. Eu não sei onde está a minha’. Minha mãe nunca deixou um filho. A Carolina atinge a menina da Cracolândia e esse adolescente, ao mesmo tempo.”
Mais de 40 anos após a morte de Carolina, finalmente o público terá acesso à sua obra completa.