Fonte: Estadão
O detalhe de uma notícia publicada em 1869 chamou a atenção naquele momento do advogado e abolicionista Luiz Gama – em meio à informação da briga da família do falecido comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto por seus bens, uma linha do texto dizia que, no testamento, o homem declarava o desejo de alforriar os 217 escravizados de sua fazenda, medida que “facilitaria” sua entrada no céu. Depois de pesquisar o assunto, Gama descobriu que as pessoas não foram libertadas.
Ele via na Questão Netto, como ficou conhecida, a chance de uma libertação coletiva sem precedentes em São Paulo, o coração da escravidão no País”, observa Bruno Rodrigues de Lima, que prepara, na Alemanha, tese sobre a obra jurídica de Luiz Gama. Ele também é organizador de um monumental trabalho: os dez volumes das Obras Completas de Gama, cerca de 5 mil páginas com mais de 750 textos, dos quais mais de 600 inéditos, e que a editora Hedra começou a lançar – saíram agora os dois primeiros, Democracia (1866-1869) e Liberdade (1880-1882).
Rara oportunidade para se conhecer um dos principais abolicionistas brasileiros, o poeta e advogado negro Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). Filho de Luiza Mahin, mulher negra africana que lutou pela liberdade dos escravizados na Bahia na década de 1830, e de um homem branco herdeiro de uma família rica de ascendência portuguesa – cujo nome até hoje é desconhecido –, Gama foi vendido pelo próprio pai como escravizado. Passou a infância, a adolescência e o início da juventude em cativeiro até conseguir sua liberdade, aos 18 anos.
Leia o texto de Luiz Gama no Acervo Estadão
Analfabeto até os 17, ele trabalhou na área policial e militar até enveredar para as letras e o jornalismo, publicando livros de poesia e fundando jornais. Foi também grande colaborador de A Província de São Paulo, jornal fundado em 1875 e que, com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, passou a se chamar O Estado de S. Paulo. Ali, publicou cerca de duas dezenas de textos, sendo um deles o mais longo estudo jurídico (quase 20 mil palavras) escrito por ele.
Leia o texto no Acervo Estadão
Gama defendeu, de graça, inúmeros escravizados brasileiros, conseguindo a libertação de mais de 500 por via judicial. Na Questão Netto, por exemplo, como ficou conhecida a história do comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto, ele conseguiu a liberação de todos os 217, em um processo para o qual escreveu mais de mil páginas com argumentações. Sobre Gama, cujo enterro em 1882 atraiu dez por cento da população paulistana, segundo estimativas da época (a cidade contava então com 40 mil habitantes), Lima respondeu por e-mail às seguintes perguntas.
Luiz Gama teve uma projeção histórica inferior à sua biografia. De que forma precisamente essa publicação da obra completa corrige essa distorção?
Mais de 600 textos inéditos de Luiz Gama estavam soterrados nos arquivos do judiciário e da imprensa brasileira. Ainda assim, a memória de Gama sobreviveu, fundamentalmente devido à tradição popular das comunidades negras em contar sua vida heroica. Foi esse “correio nagô”, principalmente em Salvador e São Paulo, que livrou sua biografia do completo desconhecimento, sobretudo nos 50 anos depois de sua morte. Embora a tradição oral tenha mantida a chama acesa, sempre se procuraram registros de sua obra e, pouco a pouco, geração a geração, desde 1904, encontraram-se aproximadamente 140 textos. Nos últimos nove anos, tenho ido pessoalmente aos arquivos e cartórios atrás desses documentos, que considero de inestimável valor histórico e público. Encontrei mais de 600 inéditos que, junto àqueles 140, compõem as Obras Completas. É uma necessidade histórica resgatar sua obra. A impressão que tenho é de que não bastou apagar, tiveram de soterrar os textos de Gama e salgar a terra.
Qual é a importância dos textos publicados por Gama em A Província de São Paulo?
Gama colaborou com o jornal desde sua fundação, em 1875, até quando ele morreu, em 1882. Em todos esses anos, às vezes em todos os meses de um mesmo ano, o nome de Gama era presença certa nas páginas do jornal, ora como autor, ora como assunto, o que demonstra a sua inserção nos debates da época. O jornal foi a plataforma de excelência para sua literatura normativo-pragmática, que se caracterizou como um projeto literário de fluxo contínuo de textos jurídicos de intervenção voltados para a resolução de casos concretos nos tribunais. Nas páginas da Província, leem-se dezenas dos mais importantes textos de Luiz Gama. Inclusive, foi justamente na Província que ele publicou o mais longo texto de sua carreira, talvez um dos mais longos da história do jornal, somando quase 60 páginas de discussão das entranhas de um processo criminal de altíssima complexidade, que foi o famoso crime da alfândega de Santos. Esse texto é, sem tirar nem pôr, um livro de Direito que, ironia da história, nunca antes foi acessado por ninguém e também constará nas Obras Completas.
A chamada Questão Netto, além de sua magnitude, marcou o início de carreira de Gama. Como você descobriu o documento?
Gama monitorava com lupa a Questão Netto e sabia do potencial explosivo da causa. Pelo menos dois anos antes de peticionar pela primeira vez no processo, Gama já acompanhava a celeuma judiciária que virou a briga entre herdeiros e sócios do finado Netto. Ele via na Questão Netto a chance de uma libertação coletiva sem precedentes na São Paulo de 1870, o coração da escravidão no País. Defendo a hipótese de que a sua demissão da polícia, em dezembro de 1869, esteja ligada a essa causa. O fato é que ele foi demitido e, em três semanas, conseguiu uma licença oficial para advogar. Como ele nunca foi rábula – mais uma invenção grosseira do racismo acadêmico –, Gama soube explorar o conhecimento normativo e conseguiu um ato juridicamente perfeito que o igualou a qualquer outro advogado, para qualquer ato da vida judiciária. Em questão de meses, lá estava ele em Santos peticionando nesse processo que marcaria sua entrada na advocacia. Descobri esse processo através de uma carta de Gama a Rui Barbosa. Na missiva, Gama disse que precisava correr a Santos “para assistir a uma audiência na causa dos escravos do comendador Netto”. Foi a senha que eu precisava para pesquisar tudo relacionado ao tal comendador e à potencial participação de Gama na causa. Fui aos arquivos de Santos e depois aos do Rio de Janeiro, onde finalmente encontrei o manuscrito de mil páginas que é a maior ação de liberdade da história do Brasil e das Américas.
Como poeta, Gama foi satírico, zombando do poder, das instituições e até do imperador Pedro II. Por que ele utilizava a poesia como meio de escárnio?
Gama usou a poesia de muitas formas. Transitou por estilos, métricas, motes e tradições. Arlindo Veiga provou, em 1944, o quanto a sua lírica era belíssima, embora ofuscada pela sátira, que alcançaria o mais alto nível produzido no Brasil imperial. A opção pelo escárnio foi tanto uma resposta às hostilidades do racismo letrado da época, como expressão de um certo gosto natural pela picardia e pela polêmica. Daí que, sendo uma veia poética natural, talhada pelo estudo que não lhe faltava, não acredito que sua postura combativa tenha comprometido a qualidade de seus versos; mas, ao contrário, que tão apenas seja uma boa pimenta baiana no prato paulista. Evidente que a pimenta da picardia desagradou muitos paladares, a ponto de dizerem que toda aquela “versalhada” era indigesta. E a fortuna crítica engoliu essa história insossa de que Gama foi um poeta medíocre, imagem tristemente difundida até os dias de hoje. Mas, apenas para falar dos seus pares românticos, o que são os versos de Gama no Cemitério de São Benedito senão o romantismo condoreiro no auge de sua forma poética – e isso onze anos antes do Navio Negreiro, de Castro Alves?
O fato de não se reencontrar com a mãe, deportada para a África, marcou Gama profundamente, não?
Rui Barbosa disse uma vez que Gama era feito “de vidro para gemer e de bronze para resistir”. A metáfora sintetiza com rara felicidade sua trajetória, que deu incontáveis exemplos de resistências às provações da vida. A procura de Gama por sua mãe, Luiza Mahin, ao longo de décadas, desde a fuga do cativeiro, em 1848, até os tempos em que era jornalista de renome, na década de 1860, é uma das faces do sofrimento que ele viveu na carne. Gama relata sonhos, choros e dedica poemas para a mãe. Mais até: deu o nome da mãe para a sua filha, que morreu prematura, noutro sofrimento desse homem negro feito de vidro e de bronze. A “geniosa, insofrida e vingativa” africana Luiza Mahin, sua mãe, sempre foi o seu norte de luta por justiça e liberdade.
Enquanto Lima Barreto (1881-1922) combateu a República, Luiz Gama criticou o Império e se transformou em grande abolicionista. Mas ambos, mesmo sem se conhecer, denunciaram o preconceito, injustiças sociais e favorecimentos de toda sorte. O que os diferencia e os aproxima?
Gama e Lima Barreto são intérpretes do Brasil e escrevem de lugares muito parecidos. Paradoxalmente, a República de Barreto era o Império de antigamente, de modo que sua crítica vai mais às linhas de continuidades entre Império e República do que às linhas de ruptura. Os privilégios, a corrupção administrativa e o racismo letrado, por exemplo, são legados de uma tradição insepulta, fortificada em escala nunca antes vista no Segundo Reinado. Evidente que Lima Barreto sabia disso, mas, pelo gênero da crônica que escrevia, voltada para intervir no debate do calor da hora, não fazia sentido responsabilizar um monstro do passado quando o monstro do presente, sob nova roupagem, devorava os seus filhos com a fome de sempre. Triste, porém, que Barreto não pôde ler a prosa de Gama. Se não há coincidências nesse mundo sórdido, não foi sem intenção que a escrita de Gama permaneceu interditada no debate de ideias, sobretudo na Primeira República, filha do último Império.
Como observa a luta de Gama contra a política positivista dos republicanos de São Paulo?
Era a luta pelo destino do Brasil. O “positivismo da macia escravidão”, termos de Gama para unificar liberais e republicanos escravocratas no mesmo balaio, pretendia prolongar a escravidão até perder de vista. Para Gama, isso seria o fim da picada, e justificaria o início de uma revolução por uma abolição imediata, ampla, geral e irrestrita, que incluísse no corpo político da nação, com cidadania e direitos, “um milhão e quinhentas mil vítimas do mais abominável crime”. A história é conhecida: Gama morreu em 1882, não viu a Abolição e a República. Os republicanos paulistas assumiram o protagonismo do novo regime político e a massa de ex-escravizados perambulou sem terra, sem trabalho, sem educação e sem República.