Mostra sobre Carolina de Jesus traz obras que pensam racismo e censura no Brasil

A biografia da autora foi escrita por Tom Farias, curador da FlinkSampa

Fonte: Folha de S. Paulo

escritora Carolina Maria de Jesus não foi registrada somente com um semblante sério, olhando para baixo e com lenço cobrindo os cabelos. Ela ora sorri, ora tem os cabelos descobertos, ora mira as lentes do fotógrafo com um olhar elevado.

A série de fotografias apresentada na mostra “Um Brasil para os Brasileiros”, no Instituto Moreira Salles de São Paulo, desloca Carolina de Jesus de uma narrativa visual de subalternidade, que a restringia à condição de moradora da favela, ou de escritora de um único livro.

Na mostra, esses vários registros da escritora são costurados ao trabalho de outros 60 artistas plásticos —o que também revela uma artista que ecoa numa produção visual contemporânea atenta ao Brasil e às estruturas racistas e opressoras que o compõem.

“O processo de pesquisa para essa exposição revelou que, além de ter escrito uma série de gêneros literários —diários, romances, poesias, peças de teatro—, ela também gravou um disco de composições próprias e fez uma série de experimentações em tecido”, diz o antropólogo Hélio Menezes, que organiza a mostra ao lado da historiadora Raquel Barreto. “É uma escritora, sem sombra de dúvidas, mas que também enveredou por uma série de outras linguagens.”

Carolina de Jesus, portanto, transborda o espaço de escritora na proposta curatorial da dupla. Isso se reflete na multiplicidade de objetos expostos, a que também se somam manuscritos, frases de sua autoria escritas nas paredes e até um curta-metragem em que ela atua. Mas também está na organização da própria mostra, com um percurso que começa fora do prédio do IMS.

A artista Criola inaugura esse trajeto com um retrato de Carolina na empena de um prédio na esquina da Consolação com a avenida Paulista —que também pode ser visto do mirante da instituição cultural. As demais obras se espalham pelo térreo e outros três andares do edifício.

“Era muito importante trazer a dimensão da rua, das caminhadas, tendo sido Carolina uma conhecedora da cidade de São Paulo, talvez como ninguém, pela grande circulação que fez”, afirmam os organizadores. É também uma perspectiva de quem sabe que nem todos chegam ao museu, por motivos diversos.

“Carolina operava um tipo bastante próprio, e inteligentíssimo, de desenvolvimento e pensamento artístico a partir de materiais despejados, de pequenos objetos do cotidiano, como pães, sapatos, panelas, papelões”, explica Menezes. “E desenvolve, a partir de materiais aparentemente sem uso ou deimportantes, a reflexão e a criação de uma linguagem.”

É um procedimento que reverbera nas obras visuais de artistas contemporâneos a Carolina, como Maria Auxiliadora e Heitor dos Prazeres, e de jovens como Maxwell Alexandre, que tem uma extensa produção em folhas de papel pardo com representações de negros no poder, e Rafael Bqueer, que aparece em meio ao lixo numa série fotográfica realizada no Rio de Janeiro.

Já Mulambö, também jovem, vai do contorno do Brasil representado em vermelho numa panela no “Entre o Alvo e o Fogo” à bandeira de uma nova nação coberta de ouro —e cujo centro estrelado de “ordem e progresso” é substituído por um búzio.

Os 15 núcleos da mostra, com mais de 300 itens pesquisados por dois anos, fazem um percurso do nascimento de Carolina de Jesus em Sacramento, em Minas Gerais, com exemplares de livros editados ainda em vida, até o fim da sua vida em Parelheiros, em São Paulo.

São desfiladas peças de nomes importantes da arte brasileira, como Arthur Bispo do RosárioDalton PaulaRosana Paulino e Sonia Gomes, que suscitam a tradição de arte têxtil e a representação de pessoas negras na pintura brasileira.

Um dos núcleos recupera um filme alemão em que Carolina de Jesus interpreta sua própria vida, e que foi proibido de circular pelo embaixador brasileiro na Alemanha. “Ele não queria aquela imagem, a forma como a miséria era retratada contrapondo o discurso ufanista da ditadura, e proibiu a exibição do documentário”, conta Raquel Barreto.

E, como é recorrente na trajetória da escritora, ela respondeu a essa interdição com uma frase exibida na parede da mostra —”é dos ditadores não gostar da verdade e dos negros”.

Estão próximas a esse núcleo outras obras que escancaram a violência da formação do Brasil, como na escultura da artista Lyz Parayzo, em que a representação do território brasileiro forma uma superfície hostil. Ou nas colunas da Brasília refeitas num palete desgastado na obra de Evandro Prado.

“É muito importante a gente entender que Carolina não é uma moda. ‘Quarto de Despejo’ é um clássico da literatura brasileira, editado desde 1960”, afirma Raquel Barreto. O estatuto de clássico parece ser devolvido à autora principalmente em “Meada”, pintura de Antonio Obá feita especialmente para a mostra.

É da retratística renascentista, para enobrecer figuras importantes, que Obá partiu. Mas os arames farpados aparentes que sustentam um tecido, de onde Carolina de Jesus puxa um fio para costurar pedras preciosas em cima de uma folha de papel, evidenciam a marca do trabalho doméstico na vida da autora.

“Está aí essa subversão, essa ironia da imagem onde ela tece a rigor da palavra, ela tece essa realidade dela de uma outra maneira. Ela desata o fio dessa meada, do que era suplício, do que era sacrifício, e reconta essa história”, afirma Antonio Obá.

O mesmo fio é desatado, cada um à sua maneira, nas obras que a escritora representada no quadro que parece mirar. “Fiquei pensando na vida horrorosa do povo do Brasil”, escreveu Carolina de Jesus no livro “Meu Estranho Diário”. “E eu também estou no meio desse povo.”​

CAROLINA MARIA DE JESUS: UM BRASIL PARA OS BRASILEIROS

  • Quando De 25/9 a 30/1/22. Ter. a sex.: 12h às 19h. Sáb., dom. e feriados: 10h às 19h
  • Onde No Instituto Moreira Salles de SP – Av. Paulista, 2424, São Paulo
  • Preço Gratuito, com agendamento pelo Sympla

Utilizamos cookies para personalizar a sua experiência neste site.
Ao continuar navegando você concorda com a nossa Política de Privacidade.