Fonte: Estadão
Há três anos, em outubro de 2018, o jornal The New York Times publicou uma crítica entusiasmada da exposição Histórias Afro-Atlânticas. O crítico Holland Cotter (prêmio Pulitzer de 2009) definiu a mostra, organizada pelo Masp e Instituto Tomie Ohtake, como uma das mais “cativantes” que teve a oportunidade de ver. Três meses depois, em dezembro, o mesmo jornal elegeu Histórias Afro-Atlânticas como a melhor exposição de 2018. Isso representou a emissão de um passaporte para uma itinerância da mostra nos EUA, que começa domingo, 24, no Texas, com uma parceria do Masp com o Museu de Houston (Texas) e a National Gallery de Washington, que recebe a exposição em 2022.
O diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa, cocurador da exposição, comemora. “É a primeira vez que uma coletiva é organizada e exportada por um museu brasileiro”, diz, reconhecendo, entretanto, o papel pioneiro que a extinta BrasilConnects teve nesse processo. Ele acrescenta outro detalhe: a mostra vai para museus “enciclopédicos”, esclarecendo que tanto o Museu de Houston como a National Gallery não podem, a rigor, ser considerados instituições dedicadas à produção moderna como o Pompidou ou o Reina Sofia. “Eles são, sim, enciclopédicos, pois têm em seus acervos de obras antigas a contemporâneas.”
A exposição reúne obras de arte e documentos da cultura negra africana relacionados com as Américas, o Caribe e a Europa em três séculos de escravidão. O Masp emprestou 27 obras para a exposição americana, que terá 149 obras, entre elas uma obra-prima que já viajou para outros países, Cipião, de Cézanne, óleo pintado em 1866 no ateliê do artista, que teve como modelo um trabalhador negro da Academia Suíça de Paris, frequentada pelo pintor.
Cipião resume como nenhuma outra obra o espírito da mostra, síntese artística e histórica da diáspora africana: na tela de Cézanne, que faz parte da coleção do Masp desde 1950, o modelo posa como um escravo americano, descansando sua cabeça num monte de algodão. O debate abolicionista chegara, enfim, aos salões parisienses.
A imagem do quadro de Cézanne certamente terá até ressonância maior na versão americana da mostra, pois a pintura faz referência explícita a uma foto do escravo Gordon publicada três anos antes da pintura na Harper’s Weekly pela dupla McPherson e Oliver. Gordon escapou do Mississippi durante a Guerra Civil americana para se juntar aos soldados do Norte. Cézanne ficou tocado com sua história – e com a foto que mostra suas costas açoitadas.
Não foi o único. A curadora do Museu de Houston, Mari Carmen Ramirez, viu a exposição em São Paulo e se interessou por ela (e pelo raro Cézanne do Masp). Percebendo o potencial do projeto numa época em que o racismo provoca mortes violentas nos EUA, a diretora da National Gallery em Washington, Kaywin Feldman, juntou-se ao museu do Texas. Mais dois outros museus deverão receber a mostra brasileira, que teve como curadores Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, curadora adjunta da área de História do Masp, em parceria com Ayrson Heráclito, Hélio Menezes (convidados) e Tomás Toledo (curador-chefe do Masp). A genealogia do projeto remonta a uma exposição apresentada em 2014 no Instituto Tomie Ohtake, Histórias Mestiças.
Batizada nos EUA como Afro-Atlantic Histories, a mostra reconta com menos objetos de arte e documentos (no Masp e Instituto Tomie Ohtake eram 450) uma história colonial de três séculos. Ela justapõe trabalhos (pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, esculturas) de artistas de 24 países, dos históricos óleos do holandês Frans Post e aquarelas do francês Debret a obras de contemporâneos como Melvin Edwards, Ibrahim Mahama e Kara Walker. Detalhe: a obra do norte-americano Edwards, um pioneiro na fusão da arte política com a abstração, pertence ao acervo do Masp e foi emprestada para a versão americana da mostra.
“Costumamos agregar ao acervo do Masp pelo menos uma obra de cada exposição que realizamos, para ampliar o escopo da coleção, que começou com arte europeia do passado”, observa o diretor Adriano Pedrosa. A preocupação do Masp em diversificar o acervo, segundo ele, “deveria ser a de todos os museus, a de contar uma história social da arte, a arte conectada à vida das pessoas”, justifica Pedrosa.
“Adriano Pedrosa e seu time de curadores do Masp trouxeram à luz o extraordinário legado artístico da diáspora africana no Ocidente”, diz a diretora da National Gallery, Kaywin Felkdman. E observa que os curadores “reuniram uma miríade dessas histórias dos descendentes dos africanos trazidos para este lado do Atlântico, revelando ainda a força da arte por eles produzida”.
De fato, as histórias africanas aqui ganham dimensão ainda maior, porque o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888, e é um território central nessa história, pois recebeu algo em tornou de 46% dos 11 milhões de africanos e africanas trazidos à força para cá, ao longo de mais de 300 anos. Mesmo após a abolição, não se desenvolveu aqui um projeto de integração social, provocando desigualdades que perduram até hoje.
Para a mostra norte-americana foi produzido um luxuoso catálogo com textos especialmente escritos por Adriano Pedrosa, Lilia Schwarcz, Tomás Toledo, curador-chefe do Masp, Kanitra Fletcher, curadora associada da National Gallery de Washington, e Vivian Crockett, do Museu de Dallas, brasileira de origem africana e especialista em diáspora. Além deles está a acadêmica Deborah Willis.
No texto de Pedrosa, o diretor artístico do Masp concorda com o crítico e teórico indiano Homi K. Bhabha, quando este diz que os museus ocidentais exibem arte de um mundo pós-colonial, esquecendo as minorias. Daí que mostrar outras “histórias”, segundo Pedrosa, ajuda a recontar essa história da arte, além do Renascimento, do barroco, do impressionismo e expressionismo.
No catálogo americano, Lilia Schwarcz cita o caso do pintor Debret para falar que, ironicamente, imagens do artista francês que mostram os horrores da escravidão serviriam de arsenal para os abolicionistas. Já Deborah Willis acredita que a fotografia ilustra melhor que outras artes a história da escravidão nas Américas e no Caribe, citando as fotos de Marc Ferrez (1843-1923), no Brasil, e de Eugenio Courret (1839-1920), no Peru. Kanita Fletcher fala dos contemporâneos “subversivos” como Paulo Nazareth e Samuel Fossoi, que tratam de questões de gênero e identidade entre os afrodescendentes.
Vivian Crockett aproveita para alfinetar a jornalista Florence Horn, que, em 1940, perpetuou o mito da democracia racial no Brasil quando o MoMA de Nova York recebeu em seu acervo (em 1939) a tela Morro (1933) de Portinari, que retrata uma favela. Para Horn, o negro era perfeitamente integrado à sociedade brasileira e mais bem tratado que o americano.
Bem, considerando obras que estão na versão americana da mostra, ela tinha razão ao evocar esse tratamento desumano dos negros em seu país. Exemplos disso são telas como Campos de Algodão (1885), de William Aiken Walker, A Última Venda de Escravos em St. Louis (1870), de Thomas Satterwhite Noble, Navio Negreiro, pintado em 1788 por George Morland, e, no século que passou, a pintura Mercado de Carne (1964), de Jacob Lawrence, e a serigrafia Negra (1975), da série Ladies and Gentlemen, de Andy Warhol.